segunda-feira, 31 de julho de 2017



 O dia em que eu mordi Jesus Cristo

 Ruth Rocha

Eu estava numa escola onde não tinha aula de religião.
E todos os meus amigos já tinham feito a primeira comunhão, menos eu.
Então me deu uma vontade danada de fazer primeira comunhão. Eu nem sabia direito o que era isso, mas falei pra minha mãe e pro meu pai e eles acharam que até podia ser bom, que eu andava muito lavada e coisa e tal, e me arranjaram uma tal de aula de catecismo, que era na igreja.
Aí eu não gostei muito, que todo sábado de manhã, enquanto meus amigos ficavam brincando na rua, eu tinha que ir na tal aula. Eu ia, né, e aí eu arranjei uns amigos e tinha uma menina boazinha que vinha me buscar que ela também ia na aula e a gente ia pra igreja rindo de tudo que a gente via.
E na aula a gente aprendia uma porção de coisas, e tinha uma que eu achava engraçada e que era uma rezinha bem curtinha, que se chamava jaculatória. Eu achava esse nome meio feio, sei lá, me lembrava alguma coisa esquisita...
E o padre uma vez mostrou pra gente um livrão, que tinha uma figura com o inferno e uma porção de gente se danando lá dentro.
E a gente tinha que aprender a rezar a Ave-Maria e o Padre-Nosso e o Creindeuspadre.
E tinha um tal de ato de contrição, e uma tal de ladainha, que a gente morria de rir.
E aí a gente começou a aprender como é que se confessava, que tinha que dizer todos os pecados pro padre e eu perguntava pro padre o que era pecado e ele parece que nem sabia direito.
Quando eu chegava em casa e contava essas coisas, meu pai e minha mãe meio que achavam graça e eu comecei a achar que esse negócio de primeira comunhão era meio engraçado...
E aí o padre começou a explicar pra gente como era a comunhão e que a gente ia comer o corpo de Cristo, que na hora da missa aquela bolachinha chamada hóstia vira o corpo de Cristo.
Eu estava muito animada era com o meu vestido novo, que era branco e era cheio de babados e rendas, e na cabeça eu ia botar um véu, que nem a minha avó na missa, só que o meu era branco e mais parecia uma roupa de noiva.
E eu ganhei um livro de missa lindo, todo de madrepérola, e um terço que eu nem sabia usar, minha mãe disse que antigamente as pessoas rezavam terço, mas que agora não se usava mais...
E o dia da comunhão estava chegando e a minha mãe preparou um lanche, ia ter chocolate e bolo e uma porção de coisas, que a gente ia voltar bem depressa da igreja, que quem ia comungar não ia poder comer antes da missa. E era só eu que ia comungar.
E eu perguntei pra minha mãe por que é que ela nunca comungava e ela disse que um dia desses ela ia.
E eu perguntei por que é que o meu pai nunca ia na igreja e ele disse que um dia desses ele ia.
E aí chegou a véspera da minha comunhão e eu tive de ir confessar. E eu morri de medo de errar o tal ato de contrição e na hora que eu fui confessar mandaram eu ficar de um lado do confessionário, que é uma casinha com uma janelinha de grade de cada lado e um lugar de cada lado para ajoelhar, e o padre fica lá dentro.
Eu ajoelhei onde me mandaram e aí eu ouvia tudo que a menina do outro lado estava dizendo pro padre e era que ela tinha desobedecido a mãe dela e o padre mandou rezar vinte Ave-Marias.
Eu fiquei meio que achando que era pecado ouvir os pecados dos outros, mas como ninguém tinha falado nada pra mim eu fiquei quieta, e quando o padre veio pro meu lado eu fui logo falando o ato de contrição: eu pecador me confesso e o resto que vem depois.
E eu contei os meus pecados, que pra falar a verdade eu nem achava que eram pecados, mas foi assim que me ensinaram. E aí o padre disse uma coisa que eu não entendi e eu perguntei “o quê” e o padre disse "vai tirar o cera do ouvido”. E eu disse “posso ir embora?” e ele disse “vai, vai logo e reze vinte Ave-Marias”. E eu achei que ele nem tinha escutado o que eu disse e que ele que precisava tirar a cera do ouvido.
No dia seguinte eu botei o meu vestido branco e eu não comi nadinha, nem bebi água, e nem escovei os dentes, de medo de engolir uma aguinha.
E eu estava morrendo de medo, que todo mundo tinha dito que se a gente mordesse a hóstia saía sangue.
A igreja cheirava a lírio, que é um cheiro que até hoje eu acho enjoado.
As meninas e os meninos que iam fazer primeira comunhão ficavam lá na frente, nos primeiros bancos e davam pra gente uma vela pra segurar.
O padre foi rezando uma missa comprida que não acabava mais e às tantas chegou a hora da gente comungar e as meninas foram saindo dos bancos e foram indo lá pra frente e ajoelhando num degrau que tem perto de uma grade.
E o padre veio vindo com uma taça dourada na mão e ele tirava a hóstia lá de dentro e ia dando uma por uma para cada menina e menino.
Aí chegou a minha vez e abri bem a boca e fechei os olhos que nem eu vi as outras crianças fazerem e o padre botou a hóstia na minha língua. Eu não sabia o que fazer, que morder não podia e a minha boca estava sequinha e a hóstia grudou no céu da boca eu empurrava com a língua e não desgrudava e enquanto isso eu tinha que levantar e voltar pro meu lugar que já tinha gente atrás de mim querendo ajoelhar.
E eu nem aprestei atenção e tropecei no vestido da Carminha e levei o maior tombo da minha vida.
É claro que eu fiquei morrendo de vergonha e eu levantei e nem prestei atenção se eu tinha machucado o joelho. O que estava me preocupando mesmo é que eu tinha dado a maior mordida na hóstia.
Eu estava sentindo tudo que é gosto na boca, que devia de estar saindo sangue da hóstia, mas não tinha coragem de pegar pra olhar.
Aí eu pensei assim: “se eu não olhar se saiu sangue agora, nunca mais na minha vida eu vou saber se é verdade essa história”.
Aí eu meti o dedo na boca e tirei um pedaço da hóstia, meio amassado, meio molhado. E estava branquinho que nem tinha entrado.

E foi assim que eu aprendi que quando as pessoas falam pra gente coisas que parecem besteira não é pra acreditar, que tem muita gente besta neste mundo!

Ruth Rocha – Historinhas Malcriadas . Série: Toda Criança do Mundo   Editora: Salamandra

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